Texto literário produzido por Pedro Gustavo Sousa Lopes, para o terceiro Sarau Mentes Livres, que aconteceu em junho de 2010. O livro tema era "Bestiário", de Julio Cortázar. O desenho também foi feito por ele, especialmente para acompanhar o texto.

Depois
de sair do hospital em que trabalhava, Johnny gostava de passar em
seu açougue na Praça do Coreto para pegar carnes para a janta e o
almoço do dia seguinte. “Empório da Carne Vila Boa, aqui não só
a carne é de primeira, mas também o cliente” – era o slogan do
açougue, o melhor da pequena cidade vila boense, inclusive.
Johnny
sempre levava coração para seus filhos, eles adoravam. Certa vez
Paulinho, o filho mais velho, que tinha apenas 9 anos, perguntou para
o pai por que ele não trazia coração de gente e não de galinha
para a janta, pois de gente deveria ser maior, e como ele gostava
tanto de coração. Johnny o mirou por alguns segundos procurando uma
resposta que não fosse em forma de bronca, e começou a explicar
para ele que para isso deveria matar pessoas e que aquilo além de
errado era canibalismo, e o pior de tudo, a lei proibia. Paulinho
retrucou dizendo que o pai poderia ir ao cemitério e pedir alguns
para o coveiro, e o pai para tentar acabar com a conversa disse que
na verdade coração de gente tinha um gosto muito ruim. Paulinho
então volta com um “então o senhor já provou?”. E o pai já
irritado e sem resposta, o manda dormir e começar a comer mais
vegetais.
Ao
tentar sair do açougue Johnny percebe que a chuva piorara e havia
estacionado seu carro um pouco longe. Então ele se lembra de uma
capa preta de chuva que tinha de reserva no açougue, correndo para
os fundos do estabelecimento para procurá-la. Logo ao entrar no
cômodo ele se depara com a capa pendurada em um gancho de carne. Ele
vai em direção a capa e acaba escorregando em um objeto de metal,
dando de cara no chão. Ao levantar o tronco, sente uma forte dor na
testa e solta um “CARAI DE ASA”. Olha para o chão a procura do
objeto que lhe causara o acidente e encontra um saca-rolha, desses
todo incrementado que encontramos nas lojas de 1,99 hoje em dia, que
vem com abridor de garrafa e faca juntos, quase um canivete suíço.
Ele pega o saca-rolha, lembra que falta um desses em sua casa, o
coloca no bolso, se levanta, pega a capa e corre para o carro,
sentido muito sua testa.
Mas
antes de fato ir para o carro, Johnny percebe dois policiais
fardados, bebendo no bar ao lado. Os dois, já bem “felizes”, não
percebem que o rádio da viatura, estacionada na frente do bar,
chama-os loucamente, repetindo inúmeras vezes a mesma frase:
_
Viatura 171, viatura 171, emergência no bairro João Francisco.
Johnny
tenta avisá-los da chamada, mas os dois ignoram seu aviso e
continuam bebendo. Johnny percebe duas garrafas de Rustoff embaixo da
mesa, e pensa consigo: “tomara que eu e minha família nunca
precisemos deles, e tomara ainda que abra um buraco no estômago
deles bebendo isso”. Finalmente então ele vai para seu carro, o
adentra e vai embora, ainda sentindo a dor na testa e pensando na
cena que acabara de ver.
Depois
de continuar sua aventura pelas ruas alagadas da cidade, Johnny
finalmente chega em casa. Era uma casa nova, moderna, grande, dois
andares, 4 suítes, garagem para dois carros e piscina para ser mais
exato. Johnny a financiara pela CAIXA, pois é um “puta negócio”,
e pagava leves prestações de 4.500 reais por mês. Por isso tinha
apenas um Celta, e sua mulher uma Variant. Ao chegar procurou o
controle do portão pelo carro, mas não o achava. Resolveu então
ligar para esposa abrir por dentro, mas ela não atendia, o que é
normal entre as mulheres, pensou, pois mulher parece que tem celular
para deixar na bolsa. Pensou em ligar para o telefone residencial,
mas lembrou que não havia pagado a conta – consequência do
financiamento novamente - e nem receber ligação o telefone estava
recebendo. Decidiu então descer na chuva e abrir o portão
manualmente, mas ao puxar o freio de mão sentiu o controle do portão
preso a ele. Respirou então aliviado por não ter de descer naquela
chuva novamente. Aquela seria sua última respirada de alívio.
Estacionou
o Celta e estranhou que a Variante de sua mulher não estava ali.
Onde diabos essa mulher foi com essa chuva há essa hora? – pensou.
Desceu do carro e se dirigiu a porta da casa. Estava entreaberta.
Saiu e ainda deixou a casa aberta! Aném! – pensou novamente.
Encostou a palma da mão na porta para empurrar e, quando ia efetuar
a ação, seu cachorro latiu, um bacê preto chamado Dog – Johnny
não era um cara muito criativo. Logo atrás dele vinha seu gato, o
Cat – realmente ele não era criativo. Johnny sorriu para os dois,
os acariciou e voltou novamente para a porta, mas Dog não parava de
latir e seus latidos doíam lá na mente dele devido à dor que
sentia na testa. Johnny então resolveu ir colocar Dog na coleira, e
o levou para a área dos fundos através de um portãozinho que
ligava a garagem a área. Para chegar à área ele devia atravessar
um longo corredor que se estendia por toda a lateral da casa, onde
havia duas janelas: uma que dava para o quarto de sua filha, Chrys
Laura, de apenas 7 anos e a outra para a cozinha. Ao passar pelas
janelas Johnny olhava para ver se via alguém, mas não achou nada.
Pensou que sua mulher além de sair naquela chuva, ainda levara os
coitados dos filhos.
Ao
chegar à área Johnny logo prendeu Dog e lhe colocou uma focinheira
para que ficasse calado. Porém antes de deixar o cachorro Johnny deu
uma olhada nas suas ferramentas que ficavam penduradas na parede da
área e percebeu que ali não estava seu facão. Na semana anterior
ele havia brigado com sua mulher que tinha pegado o facão para
cortar uma árvore que a estava atrapalhando a tirar o carro da
garagem, e como sabemos uma árvore bem que pode atrapalhar uma
mulher a tirar o carro da garagem. Pensou que ela teria pegado de
novo e já ia em direção a casa pensando na bronca que ia dar
novamente. Tentou entrar pelos fundos, mas a porta estava trancada,
então voltou pelo longo corredor e chegou à garagem, logo abrindo a
porta da frente e entrando na sala gritando o nome da esposa:
_
Dorotééééééíiaaaaa!!!!
_
Dorotéia sua vadia, você pegou meu facão de novo?!?!?
Não
veio nenhuma resposta, então lembrou que o carro da esposa não
estava lá e que provavelmente tinha saído. Acalmou-se e foi para
seu quarto.
Ao
chegar ao quarto foi direto para o banheiro. Tirou a capa preta toda
molhada e a deixou no chão mesmo. Foi em direção ao espelho para
ver o estrago em sua testa e se assustou com tamanho galo. Parecia
que havia outra cabeça saindo da sua. Abriu o armarinho e pegou um
Gelou spray. Leu a embalagem para ver a composição do produto –
mania de médico e farmacêutico – e viu ainda que o Gelou além de
dores e inchaço, acabava até com torcicolo. Ficou realmente
impressionado com aquilo. Largou o tubo de Gelou em cima da pia e foi
em direção ao box do chuveiro. O box era fosco e quando o viu
percebeu que tinha uma sombra, como se alguém estivesse ali do outro
lado. Bateu no box, mas ninguém respondeu, perguntou se havia alguém
ali mas ninguém respondeu de novo. Resolveu então abri-lo e, com um
gesto suspeito, meteu a mão no corrimão do box rapidamente e do
mesmo modo o puxou para o lado, revelando ali uma bóia de jacaré,
que tinha comprado para o filho para irem passear na próxima semana
no Hot Park, em Caldas Novas. Tirou a bóia dali, deixando-a no
banheiro mesmo, e tomou um relaxante banho quente.
Ao
terminar o banho, Johnny colocou o braço para fora do box para pegar
uma toalha. Passou a mão por toda a parede até perceber que ali não
tinha uma toalha, nem em lugar algum do banheiro. Como Johnny odiava
aquela situação! Saiu pelado, molhado e com frio do banheiro,
correndo em direção ao guarda roupa a procura de uma toalha. O
guarda roupa era enorme, oito portas, feito do mais resistente cedro,
de uma cor avermelhada muito brilhante. Levou a mão à maçaneta e
puxou, mas a porta estava emperrada. Colocou mais força na puxada,
mas não adiantou. Usou agora as duas mãos e puxou já pensando que
quebraria a porta e mandaria arrumar no dia seguinte. A porta
destravou e foi abrindo devagar, mas Johnny, devido à força com que
puxou e a água de seu corpo que havia molhado todo o chão,
escorregou, caindo e batendo com a cabeça numa cômoda. Ali mesmo no
chão, ele levou a mão a cabeça sentindo mais um galo, e quando
conseguiu voltar a si e olhar para o guarda roupa, Johnny sentiu um
cala frio que congelou sua espinha de cima a baixo, vendo à imagem
que o atormentaria pelo resto de sua vida, a imagem de sua mulher
dependurada pelo pescoço dentro do guarda roupa, sangrando pela
boca, pelas narinas, pelo ouvido e pelos olhos, totalmente nua e com
várias feridas pelo corpo, como se tivesse sido esfaqueada, porém
em nenhum lugar vital, mostrando que antes de morrer devia ter sido
cruelmente torturada.
Johnny,
ainda no chão, foi levando seu corpo para trás, sem saber o que
fazer, até um ponto em que sentiu na sua mão esquerda um líquido
viscoso, quente. Trouxe sua mão até a frente de seu rosto mostrando
que aquele líquido na verdade era sangue, que estava saindo da
cômoda na qual batera a cabeça. Foi em direção a uma de suas
gavetas, temendo o pior, e ao abrir a gaveta o pior aconteceu: dentro
da gaveta estava o corpo esquartejado de Paulinho, junto com seu
facão. Mal dava para identificar o corpo. Nesse momento Johnny
estava tão branco como cocaína, e em poucos segundos entrou em
choque, perdendo os sentidos lentamente e desmaiando logo em seguida.
Johnny
acordou no hospital em que trabalhava, sem saber exatamente onde
estava e um tanto dopado. Tentou levantar, estava meio cambaleante e
acabou caindo da cama. Um colega médico que ali estava correu para
socorrê-lo no chão, mas Johnny o empurrou. Ele se lembrava de tudo,
tentava não acreditar, mas aquela imagem não saia de sua mente.
Saiu correndo do hospital, tirando a força todos que estavam no seu
caminho. A tormenta era tanta que nem o grau causado pelos remédios
conseguia segurá-lo. Correu e correu até chegar a sua casa. Ali
estava a polícia, interditando a casa. Ele entrou desesperado na
casa, em meio aos policiais, esbarrando em todos e em tudo. Foi
direito para seu quarto procurando ali novamente os corpos de sua
mulher e seu filho. Tinha esperança ainda de achar sua filha viva,
mas o que ele não sabia era que ela também tinha sido esquartejada;
estava na gaveta de baixo. Ao chegar ao quarto entrou e trancou
rapidamente, de modo a deixar todos os policiais de fora. Olhou o
quarto, mas nada mais estava ali, apenas manchas de sangue.
Nesse
momento subiu um ódio inexplicável pelo seu corpo, uma raiva
demoníaca. Nesse momento surgiu não o Batman, não o Wolverine, mas
A BESTA. A partir dali não existiria mais o Johnny Beast de Oliveira
Pinto, existiria apenas A BESTA, em busca de vingança.
A
Besta saiu do quarto pela janela e sumiu. As pessoas só a veriam
pelo noticiário, a não ser claro suas vítimas.
Após
alguns dias a polícia conseguiu prender o responsável pelo crime
contra a família do antigo Johnny. Mas isso só serviu para juntar
todas as vítimas da Besta em um só local. Digo todas as vítimas,
pois como vocês verão, não era apenas uma. A Besta julgou
responsável pela morte da família de Johnny tanto o assassino como
os policiais que bebiam no bar e não cumpriam com o dever. Quem sabe
se eles estivessem alerta não poderiam impedir aquele crime.
A
Besta Quadrada planejou tudo nos mínimos detalhes. Esperou um dia
onde apenas os dois policiais estariam de plantão na delegacia, já
que era uma cidade pequena e não havia muitos agentes ali, e como um
fantasma que surge do além a Besta apareceu bem na frente dos dois
policiais. Aqueles dois mal viram o que os atingiram. De um lado o
facão, ainda sujo de sangue dos filhos de Johnny, atravessando o
coração de Rezende, e do outro lado um saca-rolha, bem no meio da
testa de Fábio. Depois a Besta Quadrada pegou uma garrafa de
Rustoff, jogou toda a vodka sobre os corpos sem vida dos dois
policiais e ateou fogo.
Agora
só faltava mais um, e este estava encurralado. Era uma vítima
fácil, mas que iria sofrer muito. Mais uma vez a Besta apareceu do
nada, e numa facãozada, como se fosse uma espada jedi, arrancou o
cadeado que separava um assassino do outro. Os dois se entreolharam,
como se um entendesse o que o outro pensava, e num golpe repentino a
Besta perfurou o olho esquerdo do assassino com o saca-rolha,
desferindo depois outro golpe, agora com o facão, que rasgou
levemente o pescoço do assassino, de modo a não matá-lo ainda. O
assassino caiu no chão agonizando de dor e sangrando como uma
galinha degolada. A Besta ainda perfurou várias partes de seu corpo
com a lâmina que havia no saca-rolha, e a cada perfurada, o
assassino se retorcia, mas não morria. Quase terminando a sua
vingança, a Besta tirou a máscara, olhou novamente nos olhos do
assassino, chegou bem perto do seu ouvido e perguntou:
_
Por quê?
O
assassino quase sem vida murmurou:
_
Por vingança!
Então
o assassino tirou do bolso um papel amassado, entregando-o a Besta e
logo após perdendo o resto de vida que ainda existia. A Besta vendo
aquilo enfiou o facão no coração do assassino e o arrancou, dando
então uma mordida no órgão ainda batendo. Depois disso ela pegou o
papel amassado, o abriu, ficou alguns segundos tentando entender o
que era aquilo e, de repente, um choque. Estava de volta Johnny
Beast, apavorado, como se estivesse vendo novamente os corpos de sua
família. Então ele percebeu que na verdade ele realmente era uma
besta, uma BESTA QUADRADA, posteriormente enfiando o saca-rolha na
sua própria cabeça.
O
papel caiu aberto no chão, revelando o que na verdade era uma foto,
a foto de uma garotinha, filha do assassino, morta há 1 ano por erro
médico.
Pedro
Gustavo Sousa Lopes
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