sexta-feira, 4 de junho de 2010

Museus como espaços de utopias e heterotopias


Maria Meire de Carvalho
(Doutora em História pela UnB; professora da Universidade Federal de Goiás, Campus Cidade de Goiás)

Texto apresentado na VI Semana Nacional de Museus - Museus como agentes de mudança social e desenvolvimento. Museu das Bandeiras, Cidade de Goiás, Maio de 2008.




O uso dos domínios do espaço e do tempo e como eles foram operacionalizados na materialidade museológica é o meu foco nessa reflexão. Para tanto me enveredo a pensar o poder das utopias e das heterotopias e como elas operam perante as mais distintas culturas carregadas de idéias/imagens/valores/conceitos/representações que formam o imaginário social.
A palavra utopia provém do grego, e é composta pelos termos topos, que significa lugar, espaço e pela partícula de negação u, que teria em sua composição um significado de “não lugar”. O termo heterotopia, é igualmente formado por topos (lugar, espaço) e hetero (outro), portanto, “outro-lugar”. (REIMER, 2004:113). Assim, a categoria "heterotopia abre novas perspectivas e possibilidades na construção de outros lugares, contra-lugares históricos em meios a lugares de injustiça, exclusão e exploração, e viabiliza também tecer e vivenciar alternativas ante a crise generalizada do atual mundo globalizado” (2004:114). As heterotopias por sua vez nos ajudam a repensar, a re-inventar os espaços que são constituídos/constituidores da organização do poder, da cultura e das demais organizações que criaram/inventaram/privilegiam determinados artefatos da cultura material ou das manifestações da cultura imaterial em detrimento de outras culturas.
Trato desses aspectos na perspectiva apontada por Michel Foucault nas obras: Ditos e Escritos: estética, na literatura, pintura, música e cinema (2006) e em As Palavras e as coisas (1992), com o intuito de visualizar as percepções que designam posições que ligam vários espaços a um espaço usual. Para análise das categorias de representações sociais e de imaginário social, utilizo as reflexões de Denise de Jodelet, na obra Representações sociais (2001) e para a categoria de imaginário utilizo as concepções de Cornelius Castoriadis, em A instituição imaginária da sociedade (1982).
Busco aporte nessas categorias conceituais com o intuito de compreender a ordem simbólica das representações que permeia o mundo social. Nesse raciocínio é importante ressaltar que as representações sociais são,
Sempre representação de alguma coisa (objeto) e de alguém (sujeito). As características do sujeito e objeto nela se manifestam; a representação social tem com o objeto uma relação de simbolização, (substituindo-o) e de interpretação (conferindo-lhes significações). (Jodelet 2001:27-28)



Assim, vê-se que a representação social é fluída, dinâmica e compartilhada socialmente como formas de saberes e fazeres; as representações podem também instituir uma modelização do objeto com suas práticas. Nessas condições, as representações sociais servem para agir sobre o mundo e o outro, numa intrínseca relação de poder. Mas, como salienta Cornelius Castoriadis (1982:13), “toda configuração de uma realidade social passa pelo simbólico, mas não é o reflexo do real”, pois para Castoriadis, o imaginário não é a imagem de alguma coisa, mas sim a “criação incessante, indeterminada (social-histórica e psíquica) de figuras, formas e imagens”. É preciso reafirmar que os sentidos que permeiam o imaginário não são hegemônicos e isso permite que alguns discursos sejam esquecidos e outros reafirmados, portanto, os museus estão repletos dessa “política de esquecimentos” e de reafirmações.
E os museus como espaço de afirmação e negação de sentidos se faz pelas “utopias como posicionamentos sem lugar real, mas que são posicionamentos que mantém com o espaço real da sociedade uma relação geral de analogia direta ou inversa. [...] De qualquer forma, essas utopias são espaços que fundamentalmente são essencialmente irreais”. (FOUCAULT, 2006:414-415). Já, “a heterotopia tem o poder de justapor em um só lugar real vários espaços, vários posicionamentos que são em si próprios incompatíveis” (idem, 2006:418). Foucault utiliza o conceito de heterotopia – outros lugares – como contraposição da utopia - lugares reais -, uma vez que as heterotopias são vivenciadas em todas as sociedades de todos os tempos, em processos sócio-culturais diferentes ou opostos. Segundo Reimer (2204:114), a heterotopia pode ser “lugar de resistências, liberdade, a heterotopia possibilita outras realidades sociais que se diferem daquelas que somente dominam e oprimem. Essa reflexão se estende para a operacionalização dos discursos e das coisas, pois segundo Foucault, enquanto,
As utopias consolam, porque se não dispõem de um lugar real, desabrocham, contudo, num espaço maravilhoso e liso; [...] As heterotopias inquietam, sem dúvida porque solapam secretamente a linguagem [...], que a utoriza “manter juntos” (ao lado e em frente umas das outras) as palavras e as coisas. (FOUCAULT, 1992:7-8)

As reflexões em torno das heterotopias nos alerta para o caráter ilusório dos posicionamentos da vida humana, uma vez que as heterotopias são:
[...] todos os outros posicionamentos reais que se podem encontrar no interior da cultura estão representados, contestados ou invertidos, espécies de lugares que estão fora de - todos os lugares, embora eles sejam efetivamente localizáveis. (FOUCAULT, 2006:415)

Outras reflexões convergem para os “regimes de espacialidade”, discussão realizada pelo filósofo Carlos José Martins (2002) em Utopias e heterotopias na obra de Michel Foucault – pensar diferentemente o tempo, o espaço e a história. Para o autor,
Existem as heterotopias do tempo que se acumulam ao infinito, por exemplo, os museus e as bibliotecas. Museus e bibliotecas são heterotopias nas quais o tempo não cessa de se acumular e de se empilhar até o cume de si mesmo. [...], a idéia de constituir um lugar de todos os tempos que seria, ele mesmo, fora do tempo e inacessível à sua moderdura [...] O museu e a biblioteca são heterotopias que são próprias à cultura ocidental do século XIX. (MARTINS, 2002: 97-98)

As heterotopias nos ajudam a pensar o espaço efetivamente vivenciado, concreto e que contém ao mesmo tempo elementos da representação simbólica que permite a construção de outros lugares, já que ela abre novas perspectivas e possibilidades para se construir outras experiências.
Mas, em muitos espaços museológicos o que se vê é um esforço em organizar e também em criar “um tipo de acumulação perpétua”, repleto de “regimes de verdade” que tornam o espaço dos museus como disseminadores de “regimes de espacialidades” que armazenam “verdades” sobre os acontecimentos do passado. Definições que passaram a ser sacralizadas e disseminadas como verdade unívoca, num repouso temporal imortalizado.
Questiono essa acumulação estável dos museus, como aquele que tenta congregar todas as experiências das culturas em uma única imagem que muitas vezes reduzem e minimizam práticas, fazeres e saberes, num esforço de ordenar e de “ensinar a interpretar” todas as culturas sobre um único prisma.Todos esses elementos citados por Foucault como “códigos fundamentais de uma cultura”, nos remete a re-pensar essas culturas como códigos de linguagem. Desse modo, indago: onde, como e com qual interesse político estão sendo construídas as heterotopias museológicas como espaços de reconstrução de memórias?


Referências Bibliográficas

CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.
FOUCUALT, Michel. Microfísica do poder. 12 ed. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1992.
________. Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000.
_______. Ditos e Escritos: estética, na literatura, pintura, música e cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.
JODELET, Denise. Representações Sociais. Rio de Janeiro, Editora da UERJ, 2001.
MARTINS, Carlos José. Utopias e heterotopias na obra de Michel Foucaul: pensar diferetemente o tempo, o espaço e a história. In: Imagens de Foucault e Deleuze: ressonâncias nietzschianas. Rio de Janeiro: DP&A, 2002, p, 85-98.
REIMER, Richter Ivoni. Construção de heterotopias socioculturais nas obras de comunidades judaico-cristãs. In: Revista Caminhos. Goiânia: UCG, v. 3, n.1, Jan/Jun. 2004, p. 113- 122.

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