domingo, 23 de maio de 2010

Fogo, barro, sangue e fé


Por Eduardo Rocha


No último sarau Mentes Livres, fizemos um ritual. Depositamos em um tacho de barro palavras de fé, sangue e temperamos tudo com fogo. Fogo, barro, sangue e fé. Essa é a essência do ritual da origem. Mistura que está presente no mito de toda a criação. O homem, já diria os hebreus, é barro, mas não apenas. É fé divina; é fogo que queima e cria; é sangue, elemento exclusivamente humano, que nos diferencia dos Deuses. Barro misturado com a fé, por meio do fogo, que gera o sangue. Junção do improvável, que situa o homem entre o possível e o impossível.
Como expõe Humberto de Campos, em o “Monstro”:



“Pelas margens sagradas do Eufrates, que fugia, então, sem espuma e sem ondas, caminhavam, na infância maravilhosa da Terra, a Dor e a Morte. Eram dois espetros longos e vagos, sem forma definida, cujos pés não deixavam traços na areia. De onde vinham, nem elas próprias sabiam. Guardavam silêncio, e marchavam sem ruído olhando as coisas recém-criadas.
(...)
Em passo triste, a Dor e a Morte caminham, olhando, sem interesse, as maravilhas da Criação. Raramente marcham lado a lado. A Dor vai sempre à frente, ora mais vagarosa, ora mais apressada; a outra, sempre no mesmo ritmo, não se adianta, nem se atrasa. Adivinhando, de longe, a marcha dos dois duendes, as coisas todas se arrepiam, tomadas de agoniado terror. As folhas, ainda mal recortadas no limo do chão, contraem-se, num susto impreciso. Os animais entreolham-se inquietos e o vento, o próprio vento, parece gemer mais alto, e correr mais veloz à aproximação lenta, mas segura, das duas inimigas da Vida.
(...)
- E se nós próprias fizéssemos, com as nossas mãos, uma criatura que fosse, na terra, o objeto carinhoso do nosso cuidado? Modelado por nós mesmas, o nosso filho seria, com certeza, diferente dos auroques, dos ursos, dos mastodontes, das aves fugitivas do céu e das grandes baleias do mar. Tra-lo-íamos, eu e tu, em nossos braços, fazendo do seu canto, ou do seu urro, a música do nosso prazer... Eu o traria sempre comigo, embalando-o, avivando-lhe o espírito, aperfeiçoando-lhe à alma, formando-lhe o coração. Quando eu me fatigasse, tomá-lo-ias, tu, então, no teu regaço... Queres?
(...)

Horas depois, possuía a Criação um bicho desconhecido. Plagiado da obra divina, o novo habitante da Terra não se parecia com os outros, sendo, embora, nas suas particularidades, uma reminiscência de todos eles. A sua juba era a do leão; os seus dentes, os do lobo; os seus olhos, os da hiena; andava sobre dois pés, como as aves, e trepava, rápido, como os bugios.
O seu aparecimento no seio da animalidade alarmou a Criação. Os uros, que jamais se haviam mostrado selvagens, urravam alto, e escarvavam o solo, à sua aproximação. As aves piavam nos ninhos, amedrontadas e os leões, as hienas, os tigres, os lobos, reconhecendo-se nele, arreganhavam os dentes ou mostravam as garras, como se a terra acabasse de ser invadida, naquele instante, por um inimigo inesperado.
Repelido pelos outros seres, marchava, assim, o Homem pela margem do rio, custodiado pela Dor e pela Morte.”



Dor e Morte, sangue e barro, estão juntas na origem do mito de toda criação, mas precisam do fogo e da fé, como elemento unificador. No último Mentes Livres vivenciamos um ritual. Entregamos nosso sangue ao barro e ao fogo, liberando a fé. Não foi uma tentativa de retirar esse ingrediente da nossa concepção. Não é possível qualquer criação sem esse toque divino. É ele que permite que do inanimado, barro, surja a pujança do sangue. Foi uma tentativa de liberar a fé, para que ela volte a nos constituir, aproximando-nos, assim, mais da vida, do sangue, do que da morte, do barro.
Não é negar a importância da Morte. A Morte, ao lado da Dor, é elemento obrigatório para a vida. Permite o eterno começo. Precisamos da Morte para nos desprendermos e voltarmos a iniciar, para mostrar que tudo possui um começo e um fim, que nada é imodificável.
A Morte, ao lado da fé, permite que a vida se recrie a cada instante. O problema é quando o barro, mal temperado pelo fogo, aprisiona a fé, gerando sangue limitado pelas barreiras da morte. Quando isso ocorre, o sangue e a fé se restringem ao horizonte sombrio da impossibilidade, do medo, da imutabilidade, do posto. Tem-se fé e sangue para viver, mas na frente só se vê o barro.
O último Mentes Livres foi o início, a afirmação de um compromisso, a tentativa de um novo começo. Começo que retira o barro do nosso horizonte. Origem que consegue equilibrar a Morte e a Dor, gerando uma combinação criativa entre barro, sangue, fogo e fé. Assumiu-se o impossível como condição de vida. Valorizou a loucura como condição de sanidade. Resgatou o sonho como atitude constitutiva. Assumiu o surrealismo como postura epistemológica. Surrealismo Jurídico? Não apenas. Afirmação do surrealismo como postura política, vivencial.
É preciso, constantemente, voltar aos quatro componentes da criação para que se possa manter a vida. Essa seria a arte do eterno começo, freqüente junção do barro com o sangue, com o fogo e com a fé. Como alerta Humberto de Campos, quando esses elementos perdem o equilíbrio, quando a Dor e a Morte chegam ao impasse indissolúvel, resta apenas um elemento: “o nada”.


“Abrindo os braços, a Dor lançou-se contra o monstro, apertando-o, violentamente, com as tenazes das mãos. A água, que o corpo continha, subiu, de repente, aos olhos do Homem, e começou a cair, gota a gota... Quando não havia mais água que espremer, a Dor se foi embora. A Morte aproximou-se, então, do monte de lama, tomou-o nos ombros, e partiu...”

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