Esquete
escrito por Aline Gomes Alves, para o IV Sarau Mentes Livres, que aconteceu em novembro de 2010, cujo livro tema foi “Dona Flor e seus dois
maridos”, de Jorge Amado.
(Sotaque baiano)
APOLO
– Nasci de Zeus e Latona
(Leto) e devido às minhas funções e atributos conquistei muita
influência e veneração. Sou o Deus da purificação, da beleza, da
perfeição, do equilíbrio e da razão.
DIONÍSIO
– Muito
chamado de Baco também, sou filho de Zeus, o Deus dos deuses e de
Semele,
uma
linda princesa. Sou conhecido como o Deus do vinho, das festas, da
alegria.
APOLO
– Resumindo:
Apolo X Dionísio (como
se a conclusão fosse óbvia).
DIONÍSIO
– Discordo,
discordo! Para quê tanta rivalidade desnecessária? Sugiro uma
melhor combinação, mais aprazível: Apolo E Dionísio. Que tal? Uma
parceria perfeita! Não há oposição sem complementação.
APOLO
– (Com
expressão de estranhamento, como se tivesse escutado algo absurdo)
Han? Como pode pensar assim? Uma parceria dessas jamais daria certo
com personalidades tão diferentes como as nossas. Ai, me poupe
desses seus devaneios! Basta usar a cabeça para logo perceber que
isso seria a maior furada.
DIONÍSIO
– (em
tom de reclamação) Tststs.
Desculpe lhe dizer, mas Apolo, tudo isso não passa de uma louca
obsessão
de ser fiel e estável com
essa personalidade que você decidiu “vestir”. Uma infeliz e
falsa tentativa de estar sempre de acordo consigo mesmo.
APOLO
– (Em
estado de cólera) O
que falas, maldito? Você sabe muito bem como eu sou. Todo mundo
sabe. Agora não venha você desestruturar minha imagem com toda essa
balela!
DIONÍSIO
– (Surpeso)
Mas
Apolo, meu amigo, o que é isso? Para quê tanta grosseria e
descompostura? Me surpreende, logo você, o rei da sensatez e do
equilíbrio. Vejo que, diante desse seu comportamento inesperado,
acertei em cheio na minha análise. Mas pelo visto, trata-se de um
assunto difícil pra você, nem um pouco bem-vindo. Possui algum
trauma, bloqueio? (mão
no queixo, a pensar) Acho
que precisamos resolver isso.
APOLO
– (um
pouco mais calmo) Como
podes tentar me convencer de algo com todo esse seu papo manjado? Sem
qualquer razão nem fundamento.
DIONÍSIO
– Razão?
Fundamento? Então é isso que queres? Não é de se estranhar! Pois
então... vamos utilizar a lógica do raciocínio quanto à nossa
perfeita parceria e, digo até mesmo necessária.
APOLO
– (Irritado)
Não precisas de mim e eu tampouco de ti! Para que insiste em desejar
tal loucura?
DIONÍSIO
–
Calma, meu caro, me escute. Basta ser um pouco “racional”
(fazendo
sinal de aspas com os dedos) para
compreender a minha brilhante teoria acerca de nós dois. É a
fórmula certa!
APOLO
– Então
desembucha logo com isso! Seja breve e claro, e, por favor, use o
mínimo de coerência e fundamento nessa sua “teoria” (tom
de curtição, sem botar muita fé)
DIONÍSIO
– É
simples. Basta perceber as diferenças existentes entre as nossas
características não acarretam em nenhum empecilho para nossa união,
pelo contrário, isso, na verdade, enriquecerá a nossa relação e
nos complementará das mais diversas formas e, consequentemente, como
não poderia deixar de ser, desenvolverá o meu lado Apolo, meio
tímido, e o seu lado Dionísio, super tímido.
APOLO
– (Faz
menção de dizer algo. Abre a boca e levanta o dedo, com um tom de
discordância. Respira fundo e continua a escutar).
DIONÍSIO
– Pois
então... Não vês os imensos benefícios e agrados dessa nossa
união? Cá pra nós, ninguém consegue sustentar esse seu lado puro
e santo a vida toda. E confesso que as vezes me canso desses meus
inúmeros excessos e regalias.
APOLO
– Ok,
confesso que a sua teoria tem um certo sentido. E vejo que há, de
fato, suas conveniências nessa nossa parceria.
DIONÍSIO
– Conveniência?
Pelo amor de todos os deuses, não enfraqueça a perfeição da nossa
parceria com esse termo chulo e sem graça. Prazer! Isso sim! Não há
parceria com mais agrados e satisfação que a nossa.
APOLO
– Prazer?
DIONÍSIO
– Sim,
prazer! E falando nisso, já se passa do momento de selar o nosso
digno pacto de união, da forma mais honrosa e prazerosa que há. E
isso, todo deus que se preze, creio que também os humanos, sabe
muito bem como se procede. Não é mesmo, Apolo?
APOLO
– Claro
que sei! Mas tenho os meus medos e receios. Não sei se estou
preparado.
DIONÍSIO
– Deixa
disso. A partir de agora, com essa nossa união, tudo há de ser
superado.
APOLO
– Sim,
há de ser! Concentremo-nos. Já se é hora de selar esse divino
pacto com todo o seu devido ritual.
DIONÍSIO
– Bem,
então iniciemos. Esse pacto, que nos é de grande importância,
envolve todos os sentidos, que se aguçam e se sensibilizam na medida
em que nos envolvemos e que, portanto, são naturalmente exercitados
nesse ritual.
APOLO
– O
tato. (leva
e passa a mão devagar dos ombros até as mãos de Dionísio)
DIONÍSIO
– A
visão. (encara
Apolo por um minuto)
APOLO
– O
olfato. (inspira
o cheiro do pulso de Dionísio)
DIONÍSIO
– A
audição. (coloca
o ouvido no coração de Apolo)
APOLO
E DIONÍSIO – E
o paladar.
Com
as mãos dadas (apenas um lado) e cada um com uma taça, viram o
rosto e tomam um gole de vinho tinto (de forma concentrada e
respeitosa), em seguida viram-se, no mesmo instante e selam o pacto
(com um beijo que não deve ser nem rápido e nem devagar). Em
seguida, abrem os olhos, levam as mãos à boca e encaram um ao outro
por um tempo, com expressão neutra.
APOLO
– Já
sinto algo. Meu corpo todo está a formigar, e quente como um vulcão.
DIONÍSIO
– Eu
também estou com uma sensação diferente, como se houvesse um
líquido suave e refrescante a percorrer meu corpo. São os efeitos
físicos que são imediatos. Os efeitos da alma hão de se
desenvolver com o tempo, ao longo da nossa relação.
APOLO
– E
o melhor, não sinto medo, pelo contrário, estou a gostar de tudo
isso. Apesar de diferente e um pouco desconhecido para mim, parece
que está tudo se encaixando naturalmente. Entendes o que eu estou a
falar?
DIONÍSIO
– Sim,
sim. Disse muito bem. A nossa parceria consiste numa relação
harmônica, como uma balança em perfeito equilíbrio.
APOLO
– Como
o céu e a terra, a água e o fogo, a chave e o cadeado.
DIONÍSIO
– Sim,
sim. Agora percebes o que eu estava a falar? Veja em que nenhum
momento houve oposição, pelo contrário, estão todos sempre a se
complementar.
APOLO
– Sim,
estou a enteder. Enfim, como a razão e o coração.
DIONÍSIO
– Sim,
sempre juntos.
APOLO
– É...
até que estamos nos entendendo.
DIONÍSIO
– Sim,
sim. Não lhe disse? Mas sabe, Apolo, tenho uma preocupação
constante a perturbar a minha mente.
APOLO
– O
que? Algo sobre mim, algo que fiz?
DIONÍSIO
– Não.
Não se trata de você e sim dos humanos.
APOLO
– Humanos?
Mas estes são cheios de problemas.
DIONÍSIO
– Sim,
eu sei. Mas um especificamente me incomoda, e muito.
APOLO
– Qual?
Diga-me!
DIONÍSIO
– O
fato de viverem constantemente reprimidos, contidos em nome da boa
imagem, do status, da postura impecável, quando na verdade não
passa tudo de um grande teatro. Na frente do público apresenta-se
exatamente da forma como se exige, como se espera, pois sabem que
estão diante de uma plateia em constante crítica e avaliação.
APOLO
– Mas,
Dionísio, o ser humano é fraco, não aguenta pressões e nem
críticas. A mudança é um dos seus maiores medos, por isso prezam
tanto pela vida certa e estável, mesmo que seja pacata e sem graça.
Não vês como o ser humano é uma criatura facilmente adaptável?
Mesmo às situações mais difíceis e absurdas, como à violência,
poluição, fome, desabrigo, vícios, corrupção, desigualdades.
Enfim, sujeitam-se facilmente.
DIONÍSIO
– Não,
não Apolo. Você está analisando apenas o que eles lhe apresentam
no “palco”, vamos assim dizer. Mas por trás das “cortinas”,
já pensou tudo o que se passa por lá? Os conflitos, a tensão, o
desequilíbrio, a troca constante e indecisa de “personagens”, a
frustração, a dúvida, as verdadeiras vontades, os desejos, os
pensamentos e sentimentos contidos. É lá que o ser humano se
revela, onde não há ninguém para julgá-lo.
APOLO
– Mas
no fim, sujeitam-se às exigências sociais, à lei do mais forte.
DIONÍSIO
– Sim,
tenho consciência que a maioria cede
a isso, por meras questões de aparência e status. Não entendo como
podem se sujeitar de tal forma a abrir mão das suas reais vontades e
até mesmo princípios. Mas há os distintos, e são neles que temos
que confiar. São eles que sustentam as nossas esperanças e nos dão
forças, pois acima das próprias leis, sejam elas humanas ou
dividas, eles baseiam-se no preceito essencial de justiça.
APOLO
– Sim,
reconheço que existem tais. Refiro-me agora a alguns mais
esclarecidos. Tratam-se de criaturas humanas distintas, e merecedoras
de grande admiração. Cito aqui, como não poderia deixar de ser, o
sábado Warat, que defende o amor como o fundamento maior de todas as
relações humanas éticas e justas. Gerivaldo Neiva, outro com
importante, inteligente e sábia atuação, um juiz baiano, que de
uma forma simpliesta e, ao mesmo tempo, especial, utiliza o Direito e
as leis como meio de justiça, sem maiores dificuldades e
complicações, tornando o mundo jurídico acessível a todos, sem
qualquer tipo de distinção, apesar das diferenças inevitáveis
existentes entre os próprios humanos.
DIONÍSIO
– Sim,
claro... Trata-se do Direito aplicável,, da igualdade material, da
justiça de fato. É o que lhe digo, as diferenças existem, mas não
para serem ignoradas, e sim compreendidas e respeitadas.
APOLO
– Não
entendo como certos grupos, certas pessoas inseridas em determinadas
condições são simplesmente ignoradas, como se não existissem. São
várias as vítimas: mulheres, negros, deficientes físicos e
mentais, homossexuais, pobres e prostitutas. Infelizmente, percebe-se
tudo quanto é tipo de discriminação, nos mais distintos locais e
épocas. Ah, se eu fosse um Warat, um Gerivaldo Neiva, um juiz, um
acadêmico, um simples cidadão que seja...
DIONÍSIO
– Realmente,
há temas bastante polêmicos que por falta de um real interesse ou
de suficiente conhecimento e comoção social são completamente
ignorados e que, portanto, exigem-se rápidas e efetivas mudanças na
forma de como lidar e aplicar o Direito perante as verdadeiras
necessidades hoje pertinentes, como o abordo, a homossexualidade, as
desigualdades sociais, as doenças, as drogas, a prostituição,
enfim são vários. Mas, Apolo, creio que nada possamos fazer. Essa
parte é de competência deles (apontando):
humanos. Eles estão bem mais acostumados com esse mundo, com os
problemas e as dificuldades, logo são os que mais sofrem e desejam
mudanças. Basta perguntar para eles.
APOLO
– Sim,
é verdade. Vamos, manifestem-se! Quero ouvir dos próprios as
necessidades, as críticas, as aspirações.
DIONÍSIO
– Não
se acanhem! Basta nos dizer brevemente o que tanto lhes incomodam, as
suas vontades de mudanças e a pretendida ação diante dos fatos e
das desejadas melhorias. Começamos com este(a). (indicando
alguém)
(Dinâmica.
Participação da plateia)
APOLO
– É,
acho que já estamos provocando uma pequena mudança.
DIONÍSIO
– Creio
que entenderam rapidamente a intenção de nossa mensagem. Há
a
necessidade de
uma sensibilização do Direito, não estamos exigindo leis
perfeitas, mas humanas, muito menos leis eternas, mas leis para a
realidade do agora.
APOLO
– Sim,
tranquilize-se. São eles conscientes dessa necessidade, afinal de
contas, são criaturas desenvolvidas e dotadas de capacidade
racional, sensíveis aos sentimentos, aos sonhos, vontades,
expectativas – sem se limitarem ao próprio ego, mas solidários
com a condição do outro, assim como dos demais iguais. E é
exatamente essa sensibilidade prática aliada à necessária razão,
responsável pelos grandes atos, pelas melhorias sociais e, ao mesmo
tempo, pela satisfação e o equilíbrio individual.
DIONÍSIO
– Sim,
aí que está a beleza humana: no poder de utilizar todas as
diversidades a seu favor, desde ás situações mais pessoais, até
as circunstâncias grandiosas.
APOLO
– vejo
que fomos nós que acabamos aprendendo algo com os humanos, nessa
nossa tentativa de desenvolver e conciliar todos os nossos lados e
personagens, a fim de atender tanto as nossas necessidades
intelectuais quanto as necessidades sentimentais.
DIONÍSIO
– Acho
que os invejo por isso.
APOLO
– Que
nada, não é preciso! A nossa parceria foi muito bem-vinda
exatamente por esse motivo.
DIONÍSIO
– Claro!
Vamos então comemorar com um belo brinde esses grandes e
significativos acontecimentos: a nossa parceria e, metaforicamente
dizendo, a devida manifestação do Apolo e do Dionísio na essência
e no comportamento desses humanos que estão a nos contemplar e que
tanto nos inspiram.
APOLO
– Sim,
a ocasião exige! Vamos selar o nosso pacto, lembrando do necessário
equilíbrio da entre a razão e a paixão em todos os atos da nossa
vida, desde os mais formais e grandiosos, até os mais simples e
cotidianos.
DIONÍSIO
– Iniciaremos
os brindes, cada qual considerando um motivo que lhe é de grande
importância e, por fim, concluiremos o nosso pacto brindando por um
motivo comum: a Casa Warat – a responsável por nos unir aqui neste
momento e nos tornar conscientes de uma mesma causa: a sensibilização
do Direito e, é claro, primeiramente de nós mesmos. Então, tudo já
dito, dedico o meu brinde especialmente ao amor, considerando-se
todos os seus tipos e níveis.
APOLO
– (Faz
seu brinde)
(Segue
a roda e cada qual faz um brinde individual)
DIONÍSIO
– E,
por fim, brindemos conjuntamente à Casa Warat.
(Em
seguida, Apolo e Dionísio fazem um brinde à parceria realizada, se
desfazem das taças e, com as mãos dadas, inclinam-se em tom de
despedida e agradecimento, aplaudindo logo depois todo o grupo ali
presente).